quinta-feira, 22 de julho de 2010

Sobre a culpa das mulheres

Eu estava pensando em escrever um post sobre esse assunto. Mas acabei encontrando as palavras perfeitas aqui, e reproduzo abaixo..

********

O que me deixa realmente enojada nesses episódios de violência contra mulheres é a maneira como, por uma manobra sutil, consegue-se tornar a vítima, culpada. É incrível como esse é um processo que já se naturalizou na nossa linguagem e, consequentemente, no nosso comportamento. Foram incontáveis as vezes em que ouvi essa semana, a respeito do caso Bruno: “O que ele fez não se justifica, mas ela também…” Hoje na academia meu sangue subiu e minha voz soou um tanto quanto irritada enquanto eu rebatia uma observação de uma das professoras a esse respeito, ao mesmo tempo em que piadinhas machistas pipocavam aqui e ali. E, vejam vocês, é uma academia só para mulheres. Incrível como não se consegue ver o óbvio. Vivemos numa sociedade machista e opressora e compramos e ratificamos todo santo dia o discurso que nos mantêm cativas. Não estou falando aqui de guerrinha de sexos, essa coisa caricata, infantil e ridícula, a qual também só faz alimentar essa situação.

O caso aqui é perguntar a respeito da tal frase que citei acima: ‘mas ela também’ o quê? E olha que eu perguntaria olhando a pessoa que emitiu a frase infeliz dando uma boa encarada, se pudesse. Porque essa é uma ‘colocação’ totalmente absurda e descabida. Não existe essa brecha. Essa fresta por onde se pode encontrar justificativa para qualquer barbaridade que se cometa contra uma mulher. Claro que violência é ruim por si só. Mas aqui o que está em pauta é um tipo de violência com um vetor específico, motivada por convicções que estão disseminadas nas cabecinhas das pessoas e que passam por naturais. A isso damos o nome de senso comum. Ocorre que ‘natural’ é um adjetivo totalmente falacioso. A partir do momento em que adentramos o reino da linguagem – isso em idade muito tenra – perdemos para sempre esse possível acesso ao mundo ‘natural’. O que temos é construído pela linguagem. E, muitas vezes, é essa mesma linguagem que nos impede de enxergar um dado estado de coisas. Como diz Wittgenstein [sempre ele]:

Donde vem isto? A idéia está colocada, por assim dizer, como óculos sobre o nosso nariz, e o que vemos, vêmo-lo através deles. Não nos ocorre tirá-los.

Investigações Filosóficas, §103

Reproduzimos as ideias que recebemos sem questioná-las, sem perguntar de onde elas vêm e a quem elas servem e como produto final temos isso: homens e mulheres que acham justo uma mulher ser violentada se a mesma estava usando uma roupa ‘provocante’, afinal, ‘ela pediu’. Toda uma sociedade que até acha errado que Elisa tenha sido morta com requintes de crueldade, mas que sempre se apressará em lembrar que ela era uma ‘Maria Chuteira’, que fazia filmes pornô, que era uma piranha [coisas que eu ouvi hoje, durante a malhação]. O que, no final das contas, reforça a ideia de que, se ela não tivesse ido lá,se ela não tivesse procurado… Ou seja. Elisa é a culpada da própria morte. O Bruno pode ter sido o mandante, mas, no fundo, a culpada é ela. Parece tão lógico a essas pessoas esse tipo de ‘raciocínio’.

O mesmo raciocínio que induz um delegado a dizer que, se uma moça estava desacordada, ele não pode afirmar que houve estupro – ainda que haja marcas de violência nos genitais, presença de esperma e – mais importante – o próprio depoimento da vítima. Isso, infelizmente, não é ficção. Aconteceu em Santa Catarina envolvendo jovens de 14 anos. Já posso imaginar quando o caso ganhar a grande imprensa: “Ah, mas o que uma mocinha fazia na casa de rapazes sozinha? Quem mandou ela se encher de vodca? Moças ‘direitas’ não fazem isso. Ela procurou!!!”. Quem viver, verá.

Idem no caso daquela turba enfurecida, na ocasião do quase linchamento da moça do vestido, lá na Uniban. Existem regras não escritas que as mulheres mandatoriamente têm que seguir. Do contrário, encontrarão o desprezo, o xingamento e pior: violência e morte. O corpo da mulher não pertence a ela – segundo esse mesmo pensamento. Pertence ao grupo social, ao macho que lhe ‘tomou’ por esposa, antes disso ao pai, aos irmãos a qualquer um, menos ela. Ela que experiemente querer viver sua vida como lhe aprouver, ela que ouse ser livre, que declare gostar de sexo, imagine. Quer dizer, declarar até pode, mas espere pelo pior. E não pensem que esse cenário – que mais lembra o Taliban – é comum apenas em lugares distantes dos grandes centros.

Sei que muitos podem evocar o caráter dessas mulheres como ‘justificativa’, ‘atenuante’ das barbaridades ou - como num espelho do mundo natural – um elo que une causa e consequência. ‘Elas não são flor-que-se-cheire’. Ocorre que não se desmontam preconceitos discutindo casos individuais. Não se desarticula uma situação de dominação evocando falhas de caráter. Como eu li outro dia no Twitter, direitos são direitos. Não se plesbicitam direitos, não se questiona se devem ser aplicados a A, B ou C. Direitos são para todos, indiscriminadamente. O que temos a fazer é validá-los, exigi-los, se esse for o caso. As ‘Marias-Chuteira’, ‘Marias-Gasolina’, ou seja lá que outro epíteto lamentável venham os homens a inventar, não são menos merecedoras dos direitos que qualquer ‘dona de casa honesta e mãe de família’. É preciso brigar por essa ideia todo santo dia.

Eu tenho um filho de 19 anos. E ensinei a ele que machismo é uma coisa errada. Ensinei a ele como detectar isso no comportamento dele e das pessoas que o rodeiam – porque muitas vezes são coisas bem sutis. Sempre disse a ele que não se resolve nada com violência e que – NÃO! – não está tudo bem bater numa mulher se você se desentende com ela. Isso não é aceitável, isso é errado. Bati nessa tecla e insisto até hoje em discutir com ele os casos que aparecem na mídia. Sempre acreditei que assim estaria criando um ser humano mais justo. Mais sensível ao sofrimento alheio. Mas acho que isso apenas é pouco. É preciso berrar, espernear, denunciar.

O caso Bruno me preocupa sim. Eu educo gente, eu sou responsável pela formação intelectual de gente que está começando a viver. Seria irresponsável da minha parte se eu simplesmente me recusasse a pensar sobre esse e tantos outros episódios violentos que têm acontecido ultimamente. Não sei como concluir esse texto. Acho que me perdi. Ou, de fato, não há conclusão a ser feita, a não ser de que, como grupo, estamos bem mal. Machismo é uma praga. E não me ocorre outra coisa que possa ser feita para combatê-lo a não ser, nos mantermos alertas. E falar; falar muito.

Um comentário:

Pentacúspide disse...

Eu diria que vocês, mulheres, têm mais culpa do que nós, os homens, de fomentar essa ideia idiota.

Numa família machista a tarefa de educar é quase sempre atirada para os ombros da mãe, e como é que a mãe ensina o filhos?, ensina-os que o pai é o senhor-todo-poderoso. E acontece que os filhos criam com essa imagem e quando casam procuram mulher igual à mãe, se não for, porrada nela para ser, e vai-se perpertuando a doença.

E as meninas como é que são criadas? São criadas para serem boas donas de casa, damas na mesa e putas na cama, que não devem pensar em carreiras, que o único desejo que devem sustentar é deitar a unha a um marido tipo, como diz a piada: burro para pagar a contas e inteligente para ganhar o dinheiro.

Eu já discuti muitas vezes com mulheres sobre como um marido não pode ser a finalidade de uma vida, mas o quê?, são milénios de condicionamento com que eu estava a discutir.

Mas no referente ao teu post, não se iliba Bruno das responsabilidades do que fez por aquela ser pornógrafa, porque o acto foi planeado e deliberado.

Entretanto, acho que o corpo de uma mulher é um objecto de desejo, e se uma mulher andar numa rua escura de má fama à alta hora da noite a pavonear-se com vestimentas provocadoras e for violada, as roupas servirão de atenuante ao crime, de tal maneira que se um homem se enfeitar de colares de ouro, relógio de ouro e a mostrar a quantidade do cartão de crédito passar na mesma rua à mesma hora será considerado como quem pediu o que teve se for assaltado. Há sempre contextos.
Eu cá gosto de ver uma mulher provocadoramente vestida e não acho que isso seja um convite para ser violada, talvez queira ser cantada, está num jogo de sedução ou vai ter com o seu parceiro ou parceira, mas duvido que queira ser violada. Porém, este é um assunto complicado demais para mim.