domingo, 18 de julho de 2010

Entrevista Yvonne Bezerra de Mello

Pedagogia Uerê-Mello resgata o desempenho de crianças em situações de conflito e abusos

30/05/2010 | Por: ERIKA PELEGRINO

A carioca Yvonne Bezerra de Mello, fundadora do projeto Uerê, doutora em Filologia Lingüística, trabalha com projetos sociais envolvendo crianças desde que se conhece por gente. Começou com a mãe. A curiosidade guiou a jovem de 17 anos que estudava Filologia Lingüística na Sorbone e via que no subúrbio de Paris havia crianças que não estavam na escola. "As mães diziam que elas não aprendiam. Isso me deu um nó. O que faz com que crianças não aprendam."
Este questionamento a levou para diversos países da África onde identificou que nos países onde a estrutura educacional não era boa e havia violência, guerras, existia o mesmo problema: as crianças não aprendiam na escola. Não era só isso, Yvonne descobriu também, na década de 70, que havia tecnologias para melhorar o desempenho escolar apenas de crianças ricas.
"Comecei a pesquisar o que poderia ser feito para melhorar o desempenho como um todo – fala, ação, aprendizagem – de crianças pobres em contexto de violência. A neurociência ainda estava começando, ninguém falava em neuropedagogia e eu fui estudar o cérebro, suas reações diante da violência, e que partes deveriam ser ativadas para melhorar a aprendizagem."
Em 1980 ela voltou para o Rio de Janeiro e foi trabalhar com crianças de rua. "Eu comecei a montar uma escola sem portas nem janelas, trabalhando tudo o que eu tinha pesquisado. Daí veio a chacina da Candelária, em 1993. Fui a primeira chegar lá, porque as crianças me chamaram. Eu já trabalhava com elas. Eram 72, oito morreram. Peguei as que sobreviveram e montamos uma escola embaixo da ponte."
Era o embrião do projeto Uerê que hoje atende 430 crianças. Autora de quatro livros, além de livros didáticos e do livro sobre a pedagogia Uerê-Mello, fruto de 35 anos de trabalho, ela esteve em Londrina a convite do Observatório de Estudos da Violência (Obsocil) onde apresentou a metodologia em palestra e curso. Yvonne falou com o JL.
Qual o impacto da violência na capacidade aprendizagem das crianças? A violência física ou visual, porque a criança não precisa sofrer uma violência física, pode ser um abuso visual, bloqueia uma coisa muito importante para o aprendizado que é a memória curta.

Qual a associação entre violência e bloqueio da memória curta?
Isso acontece porque essas crianças têm a parte emocional toda comprometida. Nesses anos todos, apenas 1% das crianças que eu atendi tinham problemas neurológicos, os outros têm a inteligência intacta. Porém têm bloqueio emocional que faz com que o aprendizado não se dê. A primeira coisa que vai embora [no trauma emocional] é a memória curta.

Dê um exemplo.
Você fala mesa e pergunta para a criança o que foi dito e ela fala não sei. Isso acontece em todas as escolas, a professora explica a criança não retém a informação e a professora vai explicando, até que fica cansada.

E aí a criança é burra...
Exatamente. Aí a criança é burra. Aí manda para o médico, que dá remédio e começa um ciclo vicioso muito ruim. A maioria das crianças que toma remédio não precisa. Toma Ritalina, toma Ritalina com Tofranil, e rotulada de hiperativa, de bipolar e isso é a falta de um trabalho pedagógico.

A pedagogia Uerê-Mello trabalha para ativar essa parte da memória?
Sim. Eu não mudo nenhum currículo. O que eu mudo é a maneira de ensinar, atenta aos problemas da criança. Em qualquer sala de aula têm três níveis de crianças: as que aprendem de forma mais rápida, média e muito lenta. As muito lentas não são contempladas em nenhum lugar do mundo. Com esse método você consegue equilibrar a sala melhor, nestes três ritmos.

Você trabalha com momentos de sala de aula. De que forma?
Exatamente. Em 4 horas e meia de aula, a criança passa por 12 momentos e nenhum passa de 20 minutos. Isso porque até os 12 anos a criança não tem poder de concentração por mais tempo. Em uma aula de 40 minutos, que não contempla o limite dessa criança, o professor vai se estressar e o aluno não vai aprender. Fiz uma pesquisa em várias escolas do mundo todo, até na Finlândia, em escolas ricas e pobres; 20 minutos depois os pés começam a se movimentar, um cutuca o outro, começam as bolinhas de papel.

Como chegam ao projeto essas crianças em situação de violência?
Chegam completamente bloqueadas, porque o cérebro é como um computador que tem um armazenamento de informação. Quando você precisa de determinado dado você aciona uma tecla e lança mão daquele conhecimento armazenado. Normalmente as crianças pobres não têm esse conhecimento prévio de muitas coisas, porque não foram estimuladas. Então como dar aula sobre invasões francesa se ele não sabe nem onde é a França. Então, nesta aula você tem que construir esse conhecimento prévio, com ajuda de várias coisas, como mapas, noção espacial. Se a professora chega na sala de aula e copia no quadro negro, a criança não vai aprender.

Esse professor tem que estar implicado muito além da aula, pura e simples?
Ele tem que conhecer tudo isso. Tem que conhecer um pouco de neurociência e não se ensina isso na faculdade. O professor sai da faculdade preparado para ensinar a criança de classe média que tem esse conhecimento prévio. Essa criança pesca alguma coisa.

E esse mesmo professor for dar aula em uma comunidade mais pobre, violenta?
Ele não vai conseguir dar aula, por falta desse conhecimento de neurociência que não é dado na faculdade.

Além desse conhecimento cientifico, esse professor tem que ter uma disponibilidade afetiva maior?
Com certeza, porque você vai trabalhar com o emocional o tempo todo, essas crianças funcionam como uma lata de lixo que nunca esvazia...

Em que sentido?
No sentido em que elas têm mil problemas – que não sabem que são problemas porque estão em nível de subconsciente – e não conseguem falar com ninguém sobre eles. Aí manda para o psicólogo, mas se for trabalhado o princípio disso em sala de aula, você já melhora o contato desta criança com o psicólogo.

E o princípio disso na sala de aula é essa abordagem mais afetiva?
É essa questão da oralidade, com certeza. Até o 5 º ano nos primeiros 40 minutos no meu método, a professora só faz exercícios orais, não se pega em um lápis. Isso porque eu quero aquecer o cérebro, quero irrigar esse cérebro em 70% para que essa criança possa alargar a capacidade de armazenar informação, eu tenho que alargar a memória que é muito pequena, muito curta.

Como você mantém essa capacidade de aprendizagem se essas crianças não saem do contexto de violência?
Isso que é maravilhoso, porque você constrói dentro destas crianças uma auto-estima, um entendimento e quando o menino começa a aprender tudo muda na vida dele. Porque ele resolve uma questão particular dele. Não aprender é um terror para ele. Daí ele se fortalece para os problemas externos.

Esse cotidiano das crianças e de vocês que estão no projeto é marcado por essa violência. Você já chegou a ter que negociar com traficantes...
Acontece todos os dias. Temos comunidades em guerras, diariamente. De repente fecha tudo, entra polícia, traficante, arma. Ontem, eu fui dar aula numa escola na comunidade chamada Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão. Para chegar lá tive que passar num corredor polonês com uns 100 homens armados. As crianças passam por isso todos os dias, com que cabeça elas chegam na escola

Como você se fortalece para trabalhar diariamente neste contexto?
Resultados. Por exemplo, na semana passada, uma criança de nove anos chegou na escola muda. Tinha parado de falar, só chorava, não queria ir à escola. Aconteceu alguma coisa com esse menino. É a primeira coisa que temos que olhar. Fui conversando e o que tinha acontecido: o vizinho foi assassinado, ele foi o único que viu e não podia contar para ninguém, porque estava com medo de não sei quem. Daí ele bloqueou inteiramente. Comecei um trabalho só com ele e em três semanas já vou colocá-lo de novo na escola. Tem que ter essa sensibilidade. O que ia acontecer: ele ia emudecer, não ia falar nunca mais.

Nesse momento é a oralidade, poder falar, que muda tudo?
Muda tudo. Outro caso: eu fui dar uma aula em uma escola pública outro dia, e tinha um garoto de 13 anos com uma faca na sala e ele estava muito agressivo. Parei para conversar com ele, ver o que estava acontecendo. A mãe tinha morrido de Aids, o pai era completamente ausente. Ele estava vivendo sozinho e não tinha contado isso para ninguém. Agora como uma escola não sabe o que está acontecendo com um menino destes? Isso é uma falha no sistema educacional que vê o aluno como um número, não como uma pessoa. As pessoas fecharam os olhos para estas realidades? Completamente. No caso dos professores, por desconhecimento de técnicas de como melhorar essas situações. O que eles sabem fazer é dar uma aula tradicional. Eles não conhecem a morfologia do aluno para dar aula de acordo com aquilo, porque a faculdade não ensina. A escola parou no tempo. Você tem uma escola do século 19; o currículo é parecido ainda, a maneira de o professor se mover em sala de aula é a mesma. Tudo avançou. A escola não. Estamos criando um país baseado no não aprendizado. O nível de emprego que se cria nos últimos 20 anos é de até dois salários mínimos. Tem 450 mil empregos em nível técnico que não tem quem preencha. Isso é uma tragédia.

Na sua avaliação que impede uma revolução na educação brasileira?
A educação é rígida, são cartéis. Têm várias coisas arcaicas que deveriam ser mudadas. Desde o método de alfabetização que no resto do mundo é o fônico, só Brasil e Peru não usam esse método. Agora vai falar isso em Brasília.

Você tem vários livros também.
Tenho quatro livros, mais os livros didáticos e uma série de livros infantis. Mas é muito difícil publicar. Da série de livros infantis, só publicaram um.

Por que?
Porque nesses livros, inclusive nos didáticos eu quebro paradigmas. Nos didáticos, por exemplo, sempre tem uma parte que é para a criança trabalhar a família. Estas crianças entram em desespero. Elas não conhecem o pai, nunca viram os avós. Nos meus livros a família é a imediata, aquele que está cuidando no momento. Tem a questão da mulher que é sempre colocada como a coitadinha de lencinho na cabeça, com vassoura na mão. O que é isso? Eu coloca ela com salário igual ao do marido, coloco o marido fazendo serviço doméstico. É preciso desconstruir isso tudo nos livros didáticos.

O mesmo acontece com a forma como é contada a história dos negros, por exemplo...
É. No meu método, as crianças estudam a África desde os seis anos. Nos livros didáticos tradicionais o negro é apresentado apenas como escravo chegando no Brasil. Mas ele tem uma história antes disso. As escolas não fazem conexão com nada que seja referente ao mundo em que as crianças vivem. A escola está muito chata. Eu achava chata na minha época, você achava chata e as crianças acham chata.

Você ensina a partir da história da criança?
Tinha um aluno, por exemplo, que era o único negro na família. Ele era completamente introvertido por causa disso, apresentava dificuldades para aprender. Ele perguntava: "quem eu sou". Ele era negro porque tinha uma avó negra, que ele desconhecia, nunca tinha visto nem o retrato dela. Essa história dele foi contada e daí fui ensinar genética para ele. Em quatro meses, ele estava super bem na escola. É preciso descontruir a maneira de ensinar, hoje.

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